Burro Sabido
Tirado do livro Balaio de Bichos de Cláudio Fragata
O burro era inteligente pra burro,
sempre interessado em filosofia.
Toda vez que lia uma bela poesia
dava um pulo e um zurro de alegria.
Ele trabalhava duro numa livraria.
Ali parecia um burro de carga,
empilhando livros todo santo dia
em prateleiras de infinita simetria.
O pó nas ventas lhe davaalergia,
provocando espirros estrondosos
que viravam as páginas dos livros
como ventos de uma ventania.
Aguentava o trabalho estafante
com o remoer dos ruminantes:
sempre repetindo mentalmente
trechos do Quixote de Cervantes.
Apesar do entra e sai da freguesia,
uma folga – ufa! – às vezes havia.
O burro então aproveitava o tempo
para pôr depressa a leitura em dia.
Tirava da estante algo extraordinário
como A Divina Comédia, de Dante,
ou então consultava o pai-dos-burros
para aumentar o seu vocabulário.
Cansado de tanto ler e tanta lida,
voltava à noite para a estrebaria.
Mas só conseguia pegar no sono,
lendo um romance de cavalaria.
Da bicharada que vinha à livraria
poucos eram intelectuais de raiz.
Alguns vinham só para fazer pose,
tinham apenas cultura de verniz.
Ah, quanta balela o pobre burro ouvia
de bichos iletrados como a ovelha.
Ficava em silêncio, pois ele bem sabia:
um burro fala, o outro murcha a orelha.
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Poucos deverão atentar à tristeza que há nesse poema!
[…] que novidades hei de encontrar naquele chão tão áspero e fértil para o que for tolerado como belo, serei aquele primeiro a deixar efêmeras pegadas por chegar co’s pés úmidos às seis da tarde, para tomar chá gelado e comer bolo-de-fubá?
Então descobrirei vizinhos e atenderei a seus problemas para me distrair? Enterrarão a mim como alguém que lhes amou como se ama a rotina do jornaleiro? Aliás, sobreviveremos juntos às notícias que o açougueiro nos trará – principalmente as mais assustadoras sobre economia, exportação e variação do câmbio – ?
Seremos, simplesmente por estarmos avizinhados, unidos?
E, se unidos, revolucionários?
Desligaremos os eletrodomésticos para conversar no portão?
Ou riremos da eventual falta de luz?
São indagações, nunca planos.